sexta-feira, setembro 29, 2006

Regata Jurerê: Vexame na ida (I)

Pra variar, atrasados na saída do trapiche. Estes caras não têm vergonha, não tomam jeito. A largada da primeira perna da regata estava marcada para as 11 horas da manhã de sábado e só soltaram minhas amarras pouco mais de meia hora antes. Saí do trapiche a motor, levantaram a grande em frente ao clube e pau na cara para a raia do outro lado da ponte.

Por enquanto Tarcísio e Marcão concordam

O Marcão embarcava pela segunda vez e esta era a primeira regata dele comigo. A Isadora a última, e o Fabrício, tripulante de fé, mas que sempre chega atrasado, apreensivo com a primeira balonada de verdade que se avizinhava. É verdade, até agora, só haviam subido meu balão duas vezes. A primeira no dia em que passei para as mãos do Tarcísio, mas por um tempo muito curto, pois naquele já distante 21 de abril, o nordeste que me tirou de Santo Antônio de Lisboa logo amainou e cedeu espaço para um sudeste violento. A segunda vez foi no feriado de sete de setembro, há poucos dias, na primeira navegada do Marcão. Foi um nordeste fraco que me empurrou da Ponta do Sambaqui até depois da Ponte Hercílio Luz.

Agora não, era vento de verdade e sei que não era só o Fabrício quem estava temeroso. Ele e o Tarcísio não paravam de falar mal de mim. Diziam que sou banzo, bandoleiro, que meu peso é mal distribuído, que o lastro encima da quilha deixa meu centro de gravidade muito alto e outras bobagem do gênero. Ora, vão se f...r! Me conheçam e façam menos besteira que eu respondo direitinho. Como é que eles podem falar estas merdas se nunca haviam me dominado com o balão e vento para gente grande? Fiquei ofendido e me vinguei. Não sou assim como falam, não!

Ta certo, tem um monte de gente, eu já ouvi, que fala de uma famosa atravessada do meu irmão Forever Young, perto da Ilha do Largo, durante uma Volta a Ilha, quando o Saul Damiani, dono do mano, não o segurou num nordestão de quase 40 nós. Sim, me vinguei! Durante as evoluções que antecedem a largada – era a Regata Centro/Jurerê/ Centro, que vai para o Norte no sábado e volta para o Sul no dia seguinte – depois de um rápido falatório sobre o convés, decidiram largar próximo a bóia, mais para o meio do canal, com a justificativa de aproveitar melhor a maré favorável àquela hora, e de não precisar de um “jaibe” até o mangrulho verde, a bóia de sinalização alinhada com a Ilha dos Guarázes, umas cinco milhas a frente. Blá, blá, blá...!

Subiram o balão ainda antes de cruzar a linha: delícia. O vento Sul com rajadas que passavam de vinte nós deu forma a minha vela, senti a força de Éolo me impulsionar com delicada violência, a água correr veloz pelos meus bordos e eu estava feliz. Até que um burro a bordo tocou no chicote do burro do pau de spineaker e o dito apontou para o céu da nublada manhã daquele sábado frio. Não podia ser diferente: o balão pendeu para sotavento, me virei para barlavento e enfiei a retranca na água fria. A Isadora, sentada na popa e com a escota de sotavento na mão, quase foi parar dentro d’água. O Tarcísio, do outro lado, teve que se segurar no guarda mancebo para não desabar por cima do Fabrício. O Marcão, com metade do corpo dentro da cabine e a escota de barla na mão, parecia não entender o que estava ocorrendo. Alguém, que não deu para identificar, gritou para largar a escota de sota e lá se foi ela, como a linha de pipa louca. Os preciosos minutos perdidos para me colocarem a navegar novamente foram suficientes para que eles passassem a olhar a flotilha pela popa. Uma vergonha, mas não a última.

Onde acoisa começou: soltaram o burro, pau para o céu...

... e a primeira cagada do dia.

Tudo em cima, mangrulho na proa e duas dezenas de barcos para alcançar. Logo as coisas estavam tranqüilas sobre meu convés, passei a navegar mais solto, mais leve, seguro e, aos poucos, fui me aproximando dos últimos barcos da flotilha. A causa da atravessada foi detectada e resolvida: o burro do pau de spineaker passa por um mordedor mal localizado que abre ao menor toque. Para que não viesse a se repetir, amarraram o chicote no cunho mais próximo.

Na altura do mangrulho pintou um stress. Mesmo sem experiência em regatas e, muito menos conhecendo o mar das baías de Florianópolis, o Marcão passou a querer ditar o rumo. Eu ia um pouco arribado em direção ao lado oeste das ilhas dos Ratones, uma vez que teria que deixar a ilha maior a boreste. Ele achava que a coisa certa a fazer seria dar um jibe e rumar direto para as Ilhas, enquanto o Fabrício e o Tarcísio deixavam claro que o rumo preferido por eles seria continuar com o sotavento a boreste, inclusive para economizar jibese evitar a popa rasa. Conversa daqui, argumenta dali, o comandante resolveu que, para acabar com a discussão, o melhor seria fazer o que o convidado queria.

A manobra foi perfeita e apesar do ventão, em segundos meu balão estava armado com o sotavento por bombordo e os barcos crescendo a olhos vistos. Quanto mais eu me aproximava dos Ratones, mais as ondas cresciam. Logo ali na frente o Cobra D’água, um Shaefer 31, navegava em contra-vento com o balão esvoaçando para a popa. Acho que deu problema. Com o Trinta Réis também. O lépido Delta 21 do Rosca, que era dono do meu motor até uns meses atrás, deu uma bela atravessada durante o jibe que o levaria para a passagem entre as ilhas. O vento ali ronda muito, as ondas não sabem muito bem que rumo tomar e, com vento um pouquinho mais forte, definitivamente não é o melhor lugar para fazer a manobra. Mas não tem jeito. Ou faz ou passa pelo trajeto errado. A minha vez estava chegando. Três..., dois..., um..., jibe! Manobra perfeita mais uma vez. Apontei a proa para o oeste e os tripulantes se cumprimentaram.

“Caça o sota, libera o barla” “caça o barla, libera o sota”, ordenava um, reclamava o outro. Pintou mais um stress. O Marcão queria por que queria que a tripulação usasse bombordo e boreste para designar as escotas do balão e não se conformava com nenhum argumento. “Neste barco, as escotas do balão são de barlavento e sotavento”, determinou o comandante e o convidado quis discutir. Aproveitou para dizer que elas deveriam ser verde e vermelha, e outras coisas mais que esquentaram o clima a bordo.

Daqui a pouco o blão vai para a água. Ai meu Deus... (foto Kriz Sans)

Com o forte de Santo Antônio dos Ratones desfilando pelo meu bordo direito, chegou à hora de mais um jibe, aquele que me levaria direto para a ponta norte da ilha do Francês, última marca de percurso antes da linha de chegada, umas seis milhas a frente. Foi aí que complicou tudo! Os que ficaram na secretaria, ao invés de liberar o burro do pau, soltaram a escota de sotavento, o balão enrolou no estai de proa e teve quer ser baixado na marra e desenrolado. O cara que estava na proa achou que estava tudo certo e mandou subir a vela. Subiram devagar, enrolou novamente e formou um sutiã ridículo. Baixa a vela, desenrola, troca as escotas e sobe novamente. Mais uma vez subiu devagar e a vela encheu de vento faltando uns quatro metros de adriça até o topo. “Adriça o balão”, gritou o proeiro, “pega a manicaca e adriça o balão”.

Só que antes de caçar, abriram o stopper, a adriça correu e o balão desceu mais uns seis metros até ser travado novamente. “Libera o sotavento!!!”. Foi feito, mas a escota do balão, ao correr, trouxe consigo a escota da vela grande e travou tudo no moitão. “Uma faca, uma faca”. O Marcão alcançou-a para o Tarcísio que cortou o cabo e... balão n’água...

O vento forte mantinha cheia a parte do balão que não havia alcançado a água e puxava o barco como se fosse um kitesrf. Os braços do Marcão e do Tarcísio se mostraram insuficientes para trazer a vela para dentro do barco e foi dada a última ordem: “solta a adriça do balão”. Pronto tudo na água, mas não sem antes o barco atravessar para barlavento e correr para cima de uns tantos que já haviam sido ultrapassados. A vela sobre a superfície do oceano fez lembrar a impressionante foto da grande do Brasil 1 jogada no mar depois da quebra do mastro, lá nos confins do oceano índico, entre a África do Sul e a Austrália, durante a última Volvo Ocean Race. Me senti importante!

Ela é linda, mas ser ultrapassado é uma vergonha

Quando tudo se acalmou, subiram a genoa. Daí perdeu a graça. O pior foi ver que com esta vela, os poucos que ainda estavam pela popa começaram a me alcançar, e pior ainda, a baleeira a vela que estava acompanhando a regata também havia me ultrapassado. Mais uma discussão boba sobre comando e rumo para a ilha do Francês. E lá a coisa também não foi boa. Os caras, com medo de caçar o stai de popa e com o trilho da escota da genoa no lugar errado, assistiram o resto da flotilha passar por todos os lados.


Mas tem, volta, ou melhor, a volta.